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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014
06:48 0

Vergonha do sotaque


Não só de mancadas vive a Rede Globo. A minissérie que estreou na semana passada, “Amores Roubados”, tem sido uma grande surpresa. Além da narrativa interessantíssima e outros aspectos técnicos, a atuação tem me surpreendido particularmente na simulação dos sotaques dos atores de fora do Nordeste e da inserção de ótimos artistas da nossa região, como Irandhir Santos.


Parêntesis. Quem diria que Cauã Reymond, o famigerado Mau Mau de Malhação, quase um sucessor de Igor Cigano na época, evoluiria a ponto de se tornar um grande ator? E com um sotaque nordestino bastante verossímil!



Admito que parte do meu entusiasmo com a minissérie se deve ao fato de que, por muitos anos, nosso povo e nosso sotaque tem sido quase que completamente invisibilizado pela TV brasileira. Lembro que quando era criança, chegou uma certa idade que entrei numa crise sobre a minha origem. Nascida em Campina Grande, na Paraíba, eu percebi que meu estado não aparecia nos filmes nacionais, nas novelas. O Jornal Nacional passou anos sem nunca ter indicado o clima do meu estado, e as novelas que possuíam “temática” nordestina em geral, caricaturavam e reproduziam muito mal os nordestinos. Nosso sotaque era entoado de forma jocosa, a ponto de ser tosco. 



Criança percebe logo a hierarquia de privilégios no mundo. Com pouquíssima idade, já se sente contrariada quando seus pais não possuem um carro vistoso, uma casa espaçosa ou qualquer outra coisa que demonstre riqueza ou poder. Notei cedo que parecia não ser bacana ter nascido na Paraíba, e que legal era ter nascido no Rio de Janeiro ou em São Paulo (pois tudo aparentemente acontecia lá), torcer pra um dos seus times, como o Flamengo (era o time de Xuxa), falar com artigo antes de nome próprio, e chiar seletivamente nas sílabas com “t” e “d”.

Aí você vai crescendo e vai percebendo que isso é um fenômeno geral. No jornal local, o(a) apresentador(a) é obrigado(a) a falar com o sotaque “neutro”, que na verdade é um misto de paulista com carioca. Quando algum(a) entrevistado(a) fala no mesmo jornal local, muitas vezes desperta estranhamento no próprio espectador nordestino. Quando alguém responde uma indagação com a tal da frase “com certeza”, dita bem cantadinha e com o “t” bem forte, na pontinha da língua, não raro tem alguém da região que diga "doer os ouvidos", estranhando e ridicularizando o próprio sotaque. 

Tive a oportunidade de ir a Encontros e Congressos Nacionais, e em algum momento de apresentação dos presentes, flagrei colegas paraibanos forçando um sotaque que não tinham para se direcionar ao público. “Boa tardji, meu nome é Fulano, e eu vim da Faculdade dji Djireito da Federal da Paraíba” (???).

Outra vez, uma amiga que trabalhava numa franquia de uma grande perfumaria nacional me disse que a norma repassada pela dona é que era terminantemente proibido falar com sotaque nordestino. Todo mundo da Paraíba, numa perfumaria na Paraíba, era obrigada a falar “sem sotaque”. Se a dona escutasse um “d” ou um “t” nordestinês, ou qualquer outra expressão que remetesse ao nosso sotaque, era repreensão na certa.

Claro que fui crescendo e fui percebendo que tudo isso era uma enorme violência contra a nossa cultura, contra a nossa identidade. Lembro que na época que me aventurei rapidamente no curso de Jornalismo, tive que ler o livro “Preconceito Linguístico”, de Marcos Bagno, que me abriu muitíssimo a mente. Ele desmistificava vários mitos sobre o “português correto”, como especulações sobre em qual lugar do país fala o “melhor” português e coisa e tal. E marcou muito um comentário que ele fez sobre o tal do “oitcho”, que é falado em alguns lugares do Nordeste. Falar o número desse jeito, muitas vezes é considerado “ridículo”, “estranho”, “errado”. Só que se trata do mesmo fenômeno linguístico que o “tchi” sudestino, apenas com uma vogal diferente. 

Se a linguagem reflete o mundo em que vivemos, o que é considerado certo ou errado, bonito ou feio, quase que sempre representa as relações de poder de uma determinada sociedade. Quantas vezes não convivi com pessoas do sudeste e fui corrigida por falar algum regionalismo ou simplesmente uma palavra, presente inclusive no nosso dicionário, mas que não era conhecida ou comum em outras regiões? Inúmeras vezes. No entanto, que culpa eles têm? Se muitas vezes estranhamos a nós mesmos, imagina quem ouve de fora?

Vejo, então, a minissérie “Amores roubados” com muito entusiasmo, talvez representando um marco na TV brasileira, vendo por esses aspectos que tratei. Fico muito feliz também com o espaço que o cinema nordestino tem conquistado nacionalmente, com filmes incríveis e representativos do nosso povo, como “O som ao redor”. É uma forma de marcarmos presença neste país, e passarmos por um processo de desestranhamento. Quem sabe nós e todo mundo um dia vai perceber o quanto também somos lindos.

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